domingo, 24 de novembro de 2013

O SONHO COMANDA A VIDA

 
Nasceu neste dia, em 1906.
Chamava-se Rómulo de Carvalho.Ou será António Gedeão?
Com o incentivo da mãe, leu, precocemente, Eça, Camilo, Cesário, As Mil e Uma Noites, que viria a considerar uma das suas bíblias.
Tentado pela literatura, escrevedor de poemas desde os 5 anos, apaixonou-se pelas ciências, especialmente física e química, vindo a licenciar-se nestas disciplinas na Universidade do Porto.
Pedagogo e divulgador das ciências, profissionalizou-se como professor de Física e Química, leccionando nos Liceus Pedro Nunes e Camões.
"Professor tem de ser uma paixão - pode ser uma paixão fria, mas tem de ser uma paixão.Uma dedicação". Assim definia o professor Rómulo de Carvalho a nobre actividade de um professor (tão longe do Crato...mas este não sabe nem sonha.). Para além de leccionar, foi autor de excelentes compêndios escolares de Física e Química (pelos quais o autor destas linhas estudou no antigo 7º. ano liceal), divulgando estas matérias em colecções como "Ciência para Gente Nova" e "Física para o Povo".
Para além desta actividade, foi pedagogo e divulgador da história da ciência, com vasta obra publicada abordando estas vertentes, trabalhando e investigando até ao fim da sua vida, tendo falecido a 19/02/1997.
O dia 24 de Novembro foi proclamado Dia Nacional da Cultura Científica.
Mas nunca deixou de escrever poesia.
Aos 50 anos, e sob o pseudónimo António Gedeão, publica o seu primeiro livro de poesia, "Movimento Perpétuo", que foi bem recebido pela crítica.
António Gedeão combina, de forma superior a poesia com a ciência, reflectindo também os problemas portugueses da época, e a ausência de liberdades.

Poema para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

Motivado pela boa recepção dos seus poemas, António Gedeão não só publicaria novos livros de poesia, como se aventuraria também na ficção, no teatro e no ensaio.
Rómulo de Carvalho "terminou" com António Gedeão em 1990 com "Novos Poemas Póstumos".
No entanto, e ainda hoje, a sua obra poética perdura e perdurará sempre.
Enquanto a liberdade for tão essencial como respirar.
Enquanto se acreditar que os sonhos podem transformar a vida e o mundo.
Porque o sonho comanda a vida, como escreveu António Gedeão.
 


 
 

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