domingo, 6 de outubro de 2013

NOSSA SENHORA DE LISBOA

 Foi com a inspirada frase que titula esta peça, que o grande poeta José Carlos Ary dos Santos definiu a maior cantora portuguesa de sempre, e uma das maiores intérpretes mundiais da música que ouvimos. Amália Rodrigues, que nos deixou há 14 anos.
Nascida em Lisboa a 1/07/1920, filha de beirões, a jovem Amália cedo começou a trabalhar, fosse como bordadeira, engomadeira, tarefeira, ou vendedora de fruta no Cais da Rocha do Conde de Óbidos. Em 1936 integraria a marcha de Alcântara, aquando dos desfiles das marchas no Santo António.
A sua voz, de timbre único, cedo atraiu as atenções, tendo-se estreado no teatro de revista em 1940.
É por esses anos que trava conhecimento com Frederico Valério, responsável por grande parte dos seus maiores êxitos, a par de outro grande compositor, que surgiria mais tarde, Alain Oulman.
Em 1943, por influência do embaixador Theotónio Pereira, decerto aconselhado por António Ferro, de quem Amália era amiga (na altura em que também conheceu Almada Negreiros), faz a sua primeira digressão ao estrangeiro, actuando em Madrid.
A partir daqui, o êxito internacional de Amália é fulgurante. E merecido!
Com Amália, afirma-se a cultura portuguesa, vinculada pelo fado tradicional de Lisboa, e o nome do país começa a ser conhecido por outras razões que não a ditadura.
Em 1944, desloca-se ao Rio de Janeiro, onde, uma digressão prevista para 4 semanas se transforma num sucesso de 4 meses.
De regresso a Portugal, estreia-se no cinema em 1947, com o filme "Capas Negras".
Soma êxitos em Londres e Paris onde, aqui, lhe seriam franqueadas as portas do célebre Olympia.
1950 é sinónimo de novos sucessos em Trieste, Dublin, Berna e, de novo, Paris. É durante esta digressão que o conhecido fado "Coimbra" se transforma em "Avril au Portugal", pela voz de Yvette Giraud.

A partir de Setembro de 1952, e durante 14 semanas, conquista a capital do espectáculo, Nova Iorque, actuando no "La Vie en Rose" que, coincidência ou não, foi baptizado em homenagem a uma das mais conhecidas canções de outra grande diva da música, Edith Piaf.
Participa em 1953 no programa televisivo do cantor norte-americano Eddie Fischer, na NBC, patrocinado pela Coca-Cola, bebida que abomina. Apesar de convidada para tal, recusa viver nos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, o seu estilo de música vai-se diversificando, e, a par do fado, começam a surgir  canções tradicionais, de origem rural mas, também, urbana, a que não será alheio o contacto com Alain Oulman. Grava, e interpreta, também, canções francesas, espanholas, italianas, brasileiras e americanas.
Por outro lado, e mesmo arrostando com a censura daqueles que pensam que fado se deve resumir a  fidalgos, vinho, prostitutas, dramalhões e tabernas, Amália rompe com a tradição e, numa atitude que revela uma cultura viva e actuante, começa a cantar versos de nomes enormes da poesia e literatura portuguesas: Camões, Bocage, Sidónio Muralha, Afonso Lopes Vieira, José Régio, Pedro Homem de Mello, Almada Negreiros, David Mourão Ferreira, Alexandre O'Neill, Manuel Alegre, Ary dos Santos.
É a Amália que se deve a ascensão do fado ao panteão dos grandes géneros musicais do nosso tempo, àquilo a que se passaria a designar (talvez erradamente...) fado-canção. Canção, apenas, e de letras maiúsculas. E onde a poesia ganha cidadania, e que serviu de guia e inspiração para outros intérpretes do fado, consagrados ou em afirmação, de Carlos do Carmo a Camané, de Maria da Fé a Ana Moura, de Cristina Branco a Mízia, de Teresa Salgueiro a Ana Bacalhau.
O "Fado Peniche", ou "Fado do Abandono", é proibido pela Censura (versos de Mourão Ferreira, música de Oulman), por possíveis alusões aos presos políticos.
Alain Oulman chega a ser detido pela PIDE, tendo Amália feito todos os possíveis e impossíveis pela sua libertação. O que não seria caso único...
O extraordinário "Povo que Lavas no Rio" por pouco não sofre o mesmo corte dos censores, valendo o peso institucional do autor do poema, Pedro Homem de Mello.


Em 1966 desloca-se de novo aos Estados Unidos, actuando no prestigiado Lincoln Center, com orquestra conduzida pelo então famoso maestro clássico André Kostelanetz.
Actua também em Hollywood, no Hollywood Bowl, cidade onde viria a travar amizade com grandes nomes do espectáculo musical e cinematográfico, com particular relevo para a longa amizade estabelecida com o grande Anthony Quinn ("Zorba, o Grego").
Em 1968 volta ao Lincoln Center e, em 1969, é a primeira artista portuguesa de renome a actuar na União Soviética.
Em 1971, então a trabalhar em Paris, trava conhecimento com o então exilado Manuel Alegre.
Em 1974 grava "Amália e Don Byas", disco único, na companhia do saxofonista de jazz norte-americano Don Byas


Também em 1974, no velho Coliseu dos Recreios, assiste, embora não participando, ao I Encontro da Música Popular Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa, onde trava conhecimento com um tal de José Afonso, de quem virá a gravar, posteriormente, uma tal de "Grândola, Vila Morena".
Amália foi por diversas vezes agraciada, tanto em Portugal como no estrangeiro, destacando-se em 1990 a Legião de Honra, concedida pelo então presidente francês François Mitterand.
Em 1997 é lançado o seu livro de poemas "Versos".
A casa de Amália sempre foi um ponto de reunião de tertúlias, com canções, poemas, ideias, muitas ideias.
Destaca-se um serão de Dezembro de 1968, pouco antes do Natal, onde Amália reuniu os guitarristas Fontes Rocha e Pedro Leal e, ainda, Ary dos Santos, Natália Correia, David Mourão Ferreira, Alain Oulman, a pintora Maluda e Vinicius de Moraes, Desse encontro nasceu um disco que é um dos pontos altos da nossa produção cultural "Amália/Vinicius".
Amália estará  sempre presente onde se fale, escreva e cante em português.
A Nossa Senhora de Lisboa é, sem qualquer dúvida ou ponta de chauvinismo, um dos vultos maiores da nossa cultura centenária.
Assim todos olhassem para a cultura como ela a cantou.
Até nas asas das gaivotas deste Tejo que afaga e lava Lisboa...
 

  

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