sexta-feira, 24 de maio de 2013

ZIP ZIP


Nos nossos dias, felizmente, a oferta televisiva é diversificada, os meios de comunicarmos on-line é quase incontável, mas há uma ou duas gerações atrás, o panorama era muito mais fechado, cinzento, triste, estávamos na fase pós-Salazar, quando Caetano assume o poder. E é necessário contar a história, para que esta não se repita. Porque, ao contrário do que hoje provavelmente sucederia, um programa da RTP quase parou um país e pô-lo a pensar.
No dia 24 de Maio de 1969, a televisão em Portugal mudou. Radicalmente
Aproveitando a ambígua "primavera" política proporcionada por Marcelo Caetano que, no Outono anterior, num país pobre, triste, frio, cinzento, amordaçado, massacrado pela guerra, substituíra um incapacitado Salazar, dois nomes incontornáveis da história, evolução e popularidade da rádio e da televisão portuguesas (Carlos Cruz e Fialho Gouveia), acompanhados de outro nome também obrigatoriamente incontornável na televisão, teatro e cinema (Raul Solnado) propõem à RTP um talk-show original neste país, com entrevistas, música, reportagens em directo, e periodicidade diária.
O então presidente da RTP (Ramiro Valadão), propõe a periodicidade semanal, por razões técnicas e logísticas, o que é aceite..
Para a realização deste formato inédito, é escolhido o experiente, competente e arrojado Luís Andrade, e o local das gravações seria o Teatro Villaret, com público ao vivo, interveniente e actuante, como se veria.
O genérico do programa foi da autoria do então popular conjunto Quarteto 1111 (na altura com José Cid) e o logotipo e "boneco" das mãos de Manuel Pires.
Para entrevistas aos cantautores e músicos que actuariam, foi escolhido o estudante de Letras, e apresentador de rádio, José Nuno Martins.
As gravações eram feitas ao sábado, e o programa emitida segunda-feira à noite.
Tal programa teve o nome de Zip Zip, sugerido por Raul Solnado.


A fasquia foi, desde o início, colocada muito alto.
O primeiro entrevistado era um ícone da cultura portuguesa, que pela primeira vez aparecia na televisão, e que desde logo prendeu a atenção dos espectadores: José de Almada Negreiros, poeta do Orfeu, futurista e tudo!
Nessa noite, o cinzentismo e vulgaridade da nossa TV deu lugar a cores mais vivas e inovadoras. E desafiadoras da pacatez diária.
Era possível, afinal, juntar humor, música, poesia, pintura, cinema, teatro, conversas sobre tudo e todos, enfim cultura viva, com uma grande dose de inteligência e coragem.
Não esquecer que, na época, o guião de cada semana tinha de ser visado pela censura, até negociado com esta, e na plateia havia sempre lugar para um agente da PIDE.
Depois dessa primeira sessão, o país parava às segundas-feiras para ver o ZIP.
Pela primeira vez, entravam pelas casas dos portugueses vultos da cultura até aí quase marginalizados pelo poder instaldo e, daí, pouco familiares: Almada Negreiros, David Mourão Ferreira, Alexandre O'Neill, António Victorino de Almeida, Agostinho da Silva.
Natália Correia e José Afonso foram proibidos de participar, por imposição da PIDE.
Mas também foi possível ver vendedores de castanhas, varinas, polícias sinaleiros, poetas populares (Carlos "Dos Jornais" ao vivo, António Aleixo em evocação), cauteleiros, pessoas do dia a dia com as quais nos cruzávamos todos os dias, sem darmos por isso. Algo nunca visto até então, mesclando cultura erudita com popular, enfim, e só, cultura, sempre nova, sempre fascinante.
E intérpretes de música de intervenção até então quase desconhecidos e marginalizados pelo poder censório: Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, Francisco Fanhais, José Barata Moura, José Jorge Letria, Pedro Barroso, Carlos Paredes.
Como curiosidade, diga-se que Carlos do Carmo, num dos programas, interpretou a canção "Menino de Oiro", da autoria de José Afonso. A referência ao autor foi cortada pela censura, mas deu para perceber aos espectadores mais atentos. Coisas do tal cinzentismo....
E, sempre, as rábulas de Solnado, com textos do próprio, do Fialho, do Carlos, e também do jornalista Carlos Pinhão, com activa intervenção do público. 
Pena que o arquivo da RTP não disponha de quase nenhum registo dessas sessões históricas.   
Durante 7 meses, o Zip foi um êxito. Literalmente o país parava. Cinemas e teatros encerravam nesse dia, ou alteravam horários. As ruas ficavam desertas.
Quem dizia que os portugueses não gostavam de programas inteligentes e cultos?
No entanto, as pressões da censura, cada vez mais intensas, que chegaram a desvirtuar alguns programas, e o fim da "primavera" marcelista após as eleições legislativas de 12/10/1969 fecharam as portas ao Zip.
A última emissão  foi a 29/12/1969, com um Raul Solnado lavado em lágrimas.
Como escreveria o crítico de televisão Mário Castrim: " E agora TV? Que monstruoso buraco vai ser o de segunda-feira?".
Mas a semente lançada germinou. O país já não seria o mesmo. Vieram programas análogos, parecidos, primos direitos, mas, naquelas dias, o Zip marcou uma época, uma geração e uma maneira de fazer e transmitir televisão.
Para quem queira rever, ou conhecer, esses dias, recomenda-se a leitura do livro de Helena Matos "Os filhos do ZIP-ZIP" (editora A Esfera dos Livros, 2013).


Este simples programa da RTP, conjugado com a pífia abertura política, com o debate que, ainda assim, as eleições desse ano permitiram, dentro dos espartilhos da PIDE e da censura, com os ecos dos protestos contra a guerra do Vietnam e da luta pelos direitos cívicos, as ondas de choque de Maio de 1968, com a revolta estudantil de Coimbra, que alastrou a Lisboa, o agravar da situação militar, o cada vez maior isolamento político, foi um dos factos sociais e políticos mais visíveis e estimulantes desse inesquecível 1969, e que fez despertar consciências.
E que nos deixou uma canção, um hino, conjugação perfeita entre letra e música, momento alto da nossa cultura actuante, imortal: "Pedra Filosofal", poema de António Gedeão (Rómulo de Carvalho) e música de Manuel Freire.



(e nos nossos dias, 44 anos depois, "eles" continuam a não saber e a não sonhar)


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