quinta-feira, 30 de maio de 2013

COMPETÊNCIA

"Numa rua de Lisboa

Ardeu um prédio de oito andares na Avenida António Augusto Aguiar, em Lisboa, na madrugada de terça-feira. Oito andares, mesmo num prédio abandonado que ia ser recuperado, é muito andar e muito fogo: 51 bombeiros apoiados por 15 carros de socorro chegaram depressa e a apitar, toda a gente reconhece o silvo. O alerta foi dado às 3h38. Às 3h40, contam os jornais, já estavam em ação. Os dois prédios ao lado foram evacuados, chegou a proteção civil, algum tempo depois também uma nuvem de repórteres ensonados. Tiraram as primeiras imagens, entrevistaram quem andava por ali. O chefe dos bombeiros, 50 anos, talvez menos, logo que pôde fez o ponto da situação. Disse: está tudo controlado, embora ainda haja trabalho a fazer, o rescaldo tem de ser metódico, sem pressa. O bombeiro falava com clareza, livre de palavras retorcidas. Tinha um português límpido que dava gosto ouvir.
A reportagem da RTP, onde vi tudo, cortava a seguir para a senhora da proteção civil, que também já lá estava. Vestida com aqueles impermeáveis amarelo-fluoroscentes mostrava mais do que preparação: queria ser útil. Vinha bem equipada, com uma daquelas carrinhas tipo canivete suíço. Ventanias, convulsões, incêndios, tremores, gatos nas árvores, o que for - era reconfortante tê-la por ali. Além disso também se explicava sem enfeites. Que madrugada: todos ali falavam uma língua francamente sem pretensões.
A reportagem cortava a seguir para uma moradora de um dos prédios evacuados. Eram três e pouco da manhã quando ouviu barulhos esquisitos, insistentes. Não dava para dormir. Pensou: um assalto, um ladrão. Foi à janela e viu que era melhor sair dali. Não há fumo sem fogo, não é? Os vizinhos pensaram o mesmo e desceram todos pelas escadas, parece que ninguém se empurrou. Os bombeiros informaram: atenção, ia demorar algum tempo para ficar bem feito. Efetivamente, o rescaldo acabou às onze da manhã. Entretanto, a proteção civil deu cobertores, água, abrigou aquela gente despejada para a rua numa madrugada de maio, maio que parecia fevereiro, não fossem os jacarandás em flor noutras ruas acima. Correu tudo tão bem que parecia um treino, apesar do medo. O fogo é das coisas mais assustadoras que há. Os moradores ajudaram-se, bombeiros agiram. Bom mesmo.
Um prédio arde na António Augusto Aguiar, daqueles antigos, com a estrutura em madeira, alvenaria em pedra. Os arquitetos chamam-lhe gaiola pombalina, foi construída para resistir aos abalos de terra. Aquele prédio lambido em chamas no coração de Lisboa, dizia eu, podia acabar num pavor, mais um, outro. Podia - mas não acabou. Os bombeiros trabalharam sem heroísmos. A reportagem contou a história sem devaneios sociólogos, sem política, sem crise, sem nos cravejar de opiniões e diagnósticos. Já ninguém os aguenta, aos diagnósticos. O que fazer quando tudo arde? Isto. Talvez alguma coisa ainda possa dar certo por aqui."

Lapidar, esta excelente crónica de ANDRÉ DE MACEDO no "Diário de Notícias" de hoje.
Os Coelhos, Silvas e Gaspares deste país deviam lê-lo e emoldurá-lo.
Afinal, é tão simples ser competente...
Só que deve ser um adjectivo que desconhecem em absoluto!

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