sexta-feira, 29 de agosto de 2014

BARRANCOS DE CEGOS


"Somos os únicos animais cruéis que existem sobre a face da Terra" (José Saramago)

Começaram ontem, e prolongam-se até domingo as tradicionais festas de Nossa Senhora da Conceição, em Barrancos (a "Fêra de Barrancos"), ali mesmo à sombra da imponente fortaleza de Noudar.
Graças a uma "excepcional excepção" da Assembleia da República, de 2002, é autorizada a lida de touros de morte durante esse evento, que mistura o religioso com o pagão.
E, decerto, tudo em nome da "tradição", da "cultura". Talvez, até, abençoada pelo pároco local e pelos poderes autárquicos que até pertencem a um partido que se absteve na votação da lei que criminaliza os maus tratos e abandono de animais.
A que só faltará a pressurosa transmissão em directo pela RTP, a estação televisiva para a qual serviço público deve ser a divulgação e promoção da barbaridade e da boçalidade como larga e exageradamente tem feito, apesar de todos os legítimos protestos. 
Como disse o sempre atento Maestro Vitorino de Almeida, "se tourada é cultura, então canibalismo é gastronomia".
No ano em que foi aprovada, também na Assembleia da República, uma lei que criminaliza o mau trato e o abandono de animais, como atrás se referiu (com a "ressalva" que o CDS impôs ao parceiro, quanto a animais de "trabalho" e de espectáculos "culturais" -vd. touradas), começa a tornar-se obrigatório legislar no sentido de, por uma vez, pôr cobro a essa manifestação bárbara e cruel que é a tourada.
Lembra-se que o Código Civil Francês foi este ano alterado incluindo um artigo que define os animais como "seres vivos dotados de sensibilidade".
De facto os animais têm muito mais sensibilidade que os brutamontes humanos, de barrete ou de collants rosa e lantejoulas, que descarregam as suas frustrações e impotências, incluindo sexuais, em seres indefesos, perante o gáudio e o aplauso de alguns igualmente brutamontes. 
Felizmente, cada vez mais vozes se levantam e pugnam pelo fim desta "tradição", tão tradicional como a escravatura do homem negro, como a interdição do voto feminino.
Basta de touradas, até porque o povo barrenquenho e o vasto, belo e eterno Alentejo merecem muitissimo mais!

"...É uma distância de árvores e colinas quase rasas, simples cômoros que se confundem com a planície. Já se pôs o Sol, mas a luz não se apaga. obre o campo uma cinza dourada, depois empalidece o ouro, a noite vem devagarinho do outro lado, acendendo estrelas. Chegará mais tarde a Lua, e os mochos chamarão uns pelos outros. O viajante, diante do que vê, sente vontade de chorar. Talvez tenha pena de si mesmo, desgosto de não ser capaz de dizer em palavras o que esta paisagem é. E diz apenas assim: esta é a noite em que o mundo pode começar."
("Viagem a Portugal" - José Saramago - no Alentejo)

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