segunda-feira, 16 de junho de 2014

O OVO DA SERPENTE.

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"Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote, Diário III"

No dia 30 de Maio deste ano, o Tribunal Constitucional, no exercício das suas atribuições,que constam de preceitos constitucionais, chumbou três das quatro normas do Orçamento de Estado para 2014, que lhe foram submetidas para fiscalização sucessiva.
Desde já, importa clarificar que a actual Constituição da República, aprovada em 1976 apenas com os votos contra do CDS, foi já objecto de sete revisões (1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005), através de consensos entre os partidos do chamado arco da governação, designadamente PSD e PS.
E que a maioria dos actuais juízes daquele Tribunal foi escolhida também pela actual maioria no poder.
Então, porquê tanto histerismo, tanta pesporrência, tanta demonstração de ignorância em matérias de Direito e da Constituição?
Porque julgavam que os "seus" juízes iriam aplicar a prática política de Governo & Presidente, em vez de se aterem às normas constitucionais?
Porque, também eles, são uma "força de bloqueio", como melhor diria o Sr. Silva?
Ou porque tudo não passa de uma encenação, de uma cortina de fumo para distrair as pessoas de algo mais grave, que está a corroer o país e a União Europeia, que impõe a narrativa do "viver acima das possibilidades" ou a "insustentabilidade do estado social"?
Nos anos 80, Reagan e Thatcher impuseram a desregulação dos mercados, a livre circulação de capitais e a especulação, a teoria do Estado guloso e gastador, que sugava o dinheiro dos contribuintes. John Keynes estava a ser enterrado.
Com esta política, o Estado era um peso, um opressor dos povos, um "social" parasitário.
Nada de investimentos na educação, ciência, investigação, saúde, pensões, subsídios.
Quem se quisesse educar, tratar a saúde, mitigar o desemprego, Pague!
E privatize-se tudo. É o mercado a funcionar! 
O Estado limitava-se ao assistencialismo caritativo e de esmola.
E, para acompanhar este pensamento ultra-liberal (e disfunções sucedâneas como a arquitectura deficiente da moeda única...), verifica-se que, tragicamente, correntes do dito socialismo democrático, mesmo do comunismo ou até da democracia-cristã, algumas fundadoras da CEE, se sentem seduzidas por este pensamento, como forma de cortar "gastos excessivos".  
E tem de ser assim?
Se olharmos restropectivamente para as crises de 1929/32, ou para os anos imediatamente subsequentes à 2ª. Guerra Mundial, vemos o Estado (mesmo no New Deal de Roosevelt...) a regulamentar a actividade financeira e, especialmente na Europa, a dar origem ao chamado Estado Social, cientes as pessoas e os responsáveis políticos que a paz e o desenvolvimento se deveriam basear na consagração de direitos humanos fundamentais como a saúde, a educação, a habitação, a segurança social, para lá das funções tradicionais do Estado, como a defesa e segurança, ou a representação externa. Leia-se Keynes.
Assim, a riqueza produzida era distribuída preferencialmente pela componente Trabalho - aqui considerando não só os salários como, também, a escola, o hospital, o centro de saúde, as prestações sociais, pensões, reformas, transportes, polícias- em detrimento do Capital.
Com os anos 80, e a afirmação das teses liberais sobre a "asfixia do Estado", o "Estado tentacular", tenta-se (e consegue-se...) fazer vingar a teoria de que as populações seriam melhor servidas, e desfrutariam de melhores condições de vida, se o Estado se "libertasse" das suas obrigações, se reduzisse ao mínimo (Segurança e Política Externa), passando a iniciativa privada a prover as necessidades dos povos. A pagar, claro.
Escolas, hospitais, reformas, pensões, comboios e metros, correios, até polícias, seriam melhor geridas e disponibilizadas pelos detentores do Capital.
O Estado asseguraria, quando muito, a assistência caritativa para esconder a miséria e o desemprego debaixo do tapete.
A verdade é bem diferente...
A partir daí, inverte-se a lógica distributiva, e os rendimentos da produção passam em maior escala para o Capital especulativo, desregulamentado e, não produtivo, em detrimento do Trabalho. 150 anos depois, a teoria da mais-valia, desenvolvida por Karl Marx, continua actual!
Como é lógico, se o Trabalho vê os seus recursos espoliados, é evidente que "vive acima das suas possibilidades". Ninguém questiona que o Capital, esse sim, é que desbarata recursos.
Lamentável é que quem se intitula de socialista, comunista, até democrata-cristão, mande às malvas os princípios da solidariedade, igualdade e liberdade, que são pilares da Europa, e se adapte a esta "narrativa" destrutiva, onde a dita moeda única, em vez de unir, cava fossos na Europa, não já entre nações, mas entre Devedores e Credores.
Sob o domínio da lógica ultra-liberal e dos seus seguidores, como o Governo e Presidente do nosso país, por exemplo, não é só a União Europeia que está ferida de morte, é a própria noção de democracia, pelo esbatimento artificial das ideologias que corre perigo.
O que, em si, é, de facto o triunfo de uma ideologia: a ultra-liberal, especulativa, assistencialista, que aguardava o momento propício para ver a luz do sol, aproveitando a crise internacional (repete-se, internacional...) nascida em 2008.
Nestes dias de chumbo, é necessária a ideologia e a luta por valores perenes e que ainda são património da esmagadora maioria da Humanidade.
É preciso, é necessário, dar esperança aos desesperados e recuperar as bandeiras que outros tomam, mas que não sâo nem foram suas (Front National, UKIP, Marinho e Pinto...).
Nos dias de 1939/45, grande parte dos alemães não sabiam da guerra e viviam bem, à custa do esbulho e rapina de outros povos e nações.
Com menos sangue e despesa, parece que esses dias, por cegueira de uma Europa que parece conformada e colaboracionista (França, Holanda...), querem voltar.
A serpente não pode voltar a erguer a cabeça.
É urgente abafá-la no ovo!
É preciso, cada vez mais, avisar a malta.....

(José Afonso "O que faz falta!")

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