quarta-feira, 18 de junho de 2014

JOSÉ SARAMAGO: A NOSSA LÍNGUA É A SUA PÁTRIA

 
Já passaram quatro anos quando, naquela manhã, notícias de Lanzarote, tristes, choradas, nos anunciavam a morte de José Saramago.
A obra, única, genial, ficou, como se fosse a sua herança para todos nós, todos os que amamos a Língua Portuguesa, herança trabalhada, burilada, cinzelada, torneada, pelo grande artífice que foi, que é.
Como o reconheceu o seu amigo Vasco Graça-Moura, politicamente nos seus antípodas, mas que, como intelectual lúcido que era, infelizmente desaparecido este ano, não teve pejo no elogio a quem, como ele, também se bateu pela Língua, e contra o chamado Aborto Ortográfico.  
O texto seguinte é de 23/06/2010:   

 Na morte de José Saramago - Opinião - DN

A prosa que aqui também se junta, foi escrita a meio caminho, dois anos após a morte de Saramago, dois anos antes deste post.
E no fim do caminho, juntamo-nos para ler Saramago.



"LEVANTADOS DO CHÃO

*  A José Saramago

            Quando o teu avô pressentiu a companhia gelada da senhora de negro e gadanha nas mãos, saíu para fora de casa, andou pelo caminho e abraçou-se a uma árvore. Não sabia ler nem escrever, diziam. Mas sabia ler a pulsão fervilhante da vida da terra, da natureza, da força telúrica e seminal que emana de todos os seres vivos, dos animais, das plantas, e também das rochas, areias, águas, ares que nos rodeiam e nos enchem, pulsando ininterruptamente.
Não sabia escrever, mas nesse momento escreveu uma das mais belas odes ao sentido da existência, a uma devoção ao natural, que não necessita de grandes interpretações teológicas sobre questões de fé, ou de intermediários entre o humano e o que determina a vida de todos os dias.
Haverá algo que nos transmita tão bem a força da criação melhor do que uma árvore, que começa numa pequena e buliçosa semente, e se transforma num bom gigante de  múltiplos braços abertos para nos acolher.
Por estas e por outras, e por outros exemplos que todos os dias nos são dados por pessoas ditas “analfabetas”, as forças naturais influenciam-nos mais do que nós, os ditos “cultos”, podemos adivinhar. Leiam, por exemplo, “A um deus desconhecido” de John Steinbeck, se estiveres de acordo José. 
 
E existe algum assunto que seja tabu ou não possa ser posto em causa? Só se forem aqueles que, por falta de argumentos, se receie que possam ser alvo de discussão, da qual, segundo os antigos, e sábios, nascia a luz.
A luz que traria a cultura, o conhecimento, a todos nós. Fruto proibido ? Talvez o seja, para os que ainda crêem que o homem não está preparado para todas as revelações. Como são cegos, deixando-se arrebanhar por outros cegos, como melhor se leria no “Ensaio sobre a cegueira”.
Mal sabias, José, vindo da Azinhaga do Ribatejo, serralheiro mecânico como primeira profissão, as andanças em que, felizmente para todos nós, te iriam meter.
O curioso é que, ao mexeres em assuntos em princípio tão delicados como a religião ou a morte, assuntos que muitos não querem ver tocados, porque, sabemo-lo,  é chato, para esses muitos, é que nada é absoluto, e o que ressalta, pelo menos para o escriba agora de serviço, é que a humanização dos actores principais das obras que a tua imaginação, sensibilidade e cultura nos iam oferecendo salta para a ribalta do leitor.
Então a negra, a cruel, a tirânica morte, afinal apaixona-se como qualquer mortal, despindo os trajes executórios com que a cobriam, e vestindo as roupagens de uma bela e sensual mulher, revelando, também, as fragilidades que qualquer simples mortal assume no dia a dia, de acordo com o teu livro “As intermitências da morte”, e onde as fronteiras entre o mal absoluto (a morte) e o bem, ou felicidade,  (o corpo da bela mulher) se confundem se interpenetram. Afinal, onde está fronteira entre o mal e o bem? Existirá? E o que parece horrível sê-lo-á tanto, como o que parece belo, também o será assim tão maravilhoso?  Ou dependerá, apenas, dos olhos e sentidos de quem vê, toca e sente? Ou de como o nosso cérebro descodifica as mensagens que lhe chegam de todos os lados ? Isto é, nada existe de absoluto, e tudo é relativo (o que nos leva, José, e se estiveres de acordo, a esse perturbante filme de Neil Jordan “Entrevista com o vampiro”, e ao mito de a bela e o monstro).
E, assumamo-lo, em “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, é-nos apresentado um homem frágil, com dúvidas, que também quer e tem o direito a amar, a viver, mesmo que seja uma vida simples, sem altos nem baixos, apenas a vida. Iam-te crucificando na praça pública. De novo a pequenez, a mediocridade de espírito, a “cultura” de papagaio, a sebenta de banco de escola e mocidade portuguesa, caduca. E a proibição. Ter fé não será, propriamente, sinónimo de cruzada, de espada em riste, de sangue, de eterna penitência, de expiação da culpa, de martírio do corpo e da alma. Ter fé pode ser, por exemplo, e lá voltamos, apenas abraçar uma árvore.
Não te perdoaram, os censores de serviço. Tal como não perdoariam, essas ervas rasteiras, a “blasfémia” de Martin Scorcese com “A última tentação de Cristo”, sendo os mais ferozes perseguidores precisamente os que nunca viram o filme.
Mas afinal, o que é o pecado? Quem o define? Quem pode condenar o pecador e perdoar o dito puro? O que é que, em última instância pode definir, sem direito a dúvidas, o que pode ser considerado um pecado e o que pode ser considerado uma virtude? Uma qualquer etérea entidade que nem sequer habita as agruras do nosso viver e do nosso quotidiano? Um qualquer humano subitamente iluminado ? Questões que se colocam desde que o humano e o chamado divino se enfrentam (e incluindo, aqui, o anti-divino, os extremos tocam-se, lá diz o povo), que sabemos serem delicadas e discutíveis, mas que tu, José, burilaste como poucos o fizeram na língua portuguesa e na tessitura da criação literária.
Graças à censura que te lançaram como mastim açulado, e talvez por mais razões que só tu conhecerás e não dizes, deixaste o teu país e rumaste à inóspita Lanzarote, cidadão de Portugal e de Espanha, daquela península “Jangada de Pedra”, que larga a velha Europa para se situar entre as jovens África e América, metáfora de um poderio que já foi e de outro que se adivinha, e se parece concretizar.
E não deixa de ser curioso que, deixando Portugal, também deixaste atrás de ti, um dos mais belos livros de viagens sobre o nosso país e do qual, curiosamente, pouco se fala. Referimo-nos a “Viagem a Portugal” (1ª. Edição, 1981, Círculo de Leitores), que, com toda a oportunidade, dedicaste também a Almeida Garrett, “mestre de viajantes”, no teu falar.
O prefácio de tal obra revela desde logo o que nos espera. “Às páginas adiante não se há-de recorrer como a agência de viagens ou balcão de turismo…” e “Esta Viagem a Portugal é uma história. História de um viajante no interior da viagem que fez…O viajante viajou no seu país.Isto significa que viajou por dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está formando…”.
Percorremos, assim, do Minho ao Algarve, mais do que as estradas e caminhos do país, mais do que os montes, planícies, rios, cidades, vilas e aldeias, as gentes que o habitam, o seu dia a dia, a sua cultura transmitida de boca a boca, os seus falares, os seus anseios, os seus sonhos. Recomendado a quem goste de ser feliz pois, como também consta do citado prefácio “A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos.Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue as suas flores a quem saiba cuidar delas e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva”.
Como também nada é definitivo no mundo dos homens. Ou das mulheres, as quais, nos teus escritos, assumem o protagonismo que as suas dores, o seu sangue, a sua maternidade, a sua clarividênvia merecem, a mulher que é a única que vê num mundo, numa sociedade de cegos manipulados e manipuladores, nesse espantoso “Ensaio sobre a cegueira”, ou aquela que é uma das mais ricas e perturbantes (e perturbadora) figuras femininas da nossa história literária, mesmo da história literária a nível mundial, Blimunda Sete Luas, que vê  para além do que é visível, que percebe mais do que seria perceptível, que entende o que os outros não enxergam. Que assume a feminilidade. Que assume o sexto sentido de que tanto se fala e do qual nós homens, porque o somos, não o sentimos.
Figura única, como único é “Memorial do Convento”, onde a paranóia real se cruza com o esforço escravo dos homens comuns para erguer um monumento de glorificação à opulência, onde um sonhador tenta bater as asas da sua passarola para levantar voo desta pobre terra (Bartolomeu Lourenço de Gusmão), acompanhado pela música de Scarlatti e por Baltazar Sete Sóis e Blimunda Sete Luas. E onde tudo acaba num auto de fé, claro, mais um (actualmente não há fogueiras, apenas uma assinatura sob selo branco), que também não poupou o grande dramaturgo António José da Silva “o Judeu” (“Guerras do Alecrim e da Manjerouna”), como consta do penúltimo parágrafo do livro.
Livro que, como poucos, apela, visceralmente, à inteligência.
Por falar em dramaturgo, José, convém também recomendar a quem esta prosa lê, que não se pode esquecer a tua produção de obras de teatro que, embora escassa face a outro tipo de intervenção, é de abordar com interesse : “A Noite”, “Que farei com este livro?” (belissima homenagem a Luís de Camões, esse génio que acabou a ir receber a tença ao paço, como canta o belíssimo poema da Sophia), “A segunda vida de São Francisco de Assis”, “In Nomine Dei” e “Don Giovanni, ou o dissoluto absolvido”.                
Tal como não se pode, de forma alguma, esquecer a produção poética, através de “Os poemas possíveis”, “Provavelmente alegria” e “O ano de 1993”. E de “Os poemas possíveis”, cuja primeira edição data de 1966, da Portugália Editora, destaca aqui o escriba a última quadra do poema Ouvindo Beeethoven, que é bom recordar, com a 5ª. Sinfonia em fundo:
“Mas quando nos julgarem bem seguros
Cercados de bastões e fortalezas
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas”
Se há pouco nos referimos ao esforço escravo, é de todo justo destacar a tua denúncia das situações de exploração do homem pelo homem, de opressão, seja física seja mental, da luta pelo direito à dignidade e à indignação, pelo desejo que homens e mulheres sejam humanos, apesar de alguns pecadilhos que te possam, porventura, apontar sobre factos ocorridos em anos de fogo, e que devem ser assumidos, e quem esteja isento de culpas que atire a primeira pedra, como sói dizer-se.
Leia-se de novo “Ensaio sobre a cegueira” e, acima de todos, e mais uma vez na opinião do escrevedor, “Levantado do chão”, prémio cidade de Lisboa de 1980, e maravilhosa e poética prosa sobre o desbravar, ao longo de várias gerações, do caminho para a assunção do estatuto de cidadãos de pleno direito, de uma família alentejana. E do seu cão.
Cão que é recorrente na tua obra, contraponto ao humano, aparecendo não como o melhor amigo do homem, mas talvez como a consciência que zurze o animal homem, um coro grego de quatro patas e nariz perscrutador e atento. Lá dizia o Mahatma Ghandi que o desenvolvimento de uma nação se poderia medir no modo como trata os seus animais… 
Transversal a toda a tua obra, José, é a exaltação e o enriquecimento da língua portuguesa, num renovar constante da sua evolução. Língua que trabalhaste como poucos, que moldaste como o ferro da serralharia, soltando chispas de talento, inovação nas palavras e na composição, fluindo com a doçura que só uma língua viva pode ter, como bem o ilustram, e como que paralelamente, as obras, dizemos nós, os sermões do Padre António Vieira, esse príncipe do português. Sim, que uma língua não evolui por decreto ou acordo, mas pelo uso que dela fazem os seus falantes e os seus escritores, tomada esta designação no seu sentido mais lato, direi, escrevedores, que uma língua viva é burilada todos os dias. Só pode.
Língua que, convirá recordá-lo aos mais distraídos, é de origem latina, começando a separar-se do castelhano logo no início do século XI, passaram mil anos, quem diria, que enforma o cantante galaico-português, consolidado nos séculos IX a XII, e no qual serão escritas (a partir do século XIII), as grandes obras da poesia lírica medieval do nosso território, que verá o seu fim só no século XIV.
Em paralelo, e já no século XIII, surgem documentos escritos na “língua vulgar”, a que se chamará português.
D. Afonso III, em 1255, estabelece que a língua de registo na chancelaria régia passe a ser o português. Em 1279, D. Dinis estabelece que o mesmo passe a ser a língua oficial em todos os actos jurídicos do reino.
Português que se afirma com o desenvolvimento das feiras, e a ascensão social da burguesia e de algumas camadas populares, designadamente aquando da crise dinástica e posteriores e riquissimos acontecimentos de 1383/85.
A partir daí, a evolução é constante, entrando na idade adulta nos tempos do grande Luís de Camões (a quem dedicaste um poema de “Os poemas possíveis” – “Epitáfio para Luís de Camões”, recomenda-se), e enriquecendo-se, desde o início, com vocábulos de diferentes origens, fossem a dos povos germânicos pós império romano, ao árabe que tanto nos marcou, ao provençal e ao francês trazidos por cavaleiros e monges, aos dialectos africanos, ameríndios, hindus, chineses, malaios, e outros, que nos influenciaram, e a quem o português influenciou e ainda influencia. Razão tinha o Eça quando denominava o português do Brasil como “português com açúcar”.
E, por muito que alguns não queiram, não tenhamos dúvidas que a língua portuguesa, fale-se onde for falada, ou escreva-se onde se escrever, continuará a evoluir, sempre que alguém a fale ou a escreva.
O prémio Nobel de 1998, mais do que justo, recompensa toda uma obra e, acima de tudo, faz saltar para o domínio universal o português, essa língua que banha os cinco continentes e da espuma dessa água fervilhante, cresce, num movimento perpétuo (lá o cantaria Gedeão…).
Mais do que um país, é um falar e um escrever que aparecem na ribalta e que despertam a curiosidade e o interesse científico a nível planetário, agora que a informação circula à velocidade da luz.
E nesse dia levantado em que exibiste o diploma da academia sueca, estavam presentes mais do que tu, do que a eterna e amorosa Pilar, do que os amigos mais chegados.
Retomamos o último parágrafo do “Levantado do chão”:
“Põe João Mau-Tempo o seu braço de invisível fumo por cima do ombro de Faustina, que não ouve nem sente, mas começa a cantar, hesitante, uma moda de baile antigo,…E olhando nós de mais longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver Augusto Pintéu, o que morreu com as mulas na noite do temporal, e atrás dele, quase a agarrá-lo, sua mulher Cipriana,… Vão todos, os vivos e os mortos. E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal”.
E vamos todos.
Todos os que ainda acreditam que o ser humano também tem direito a um ofício estável e remunerado de acordo com os seus conhecimentos e artes; tem direito a uma alimentação, a uma saúde, a uma educação que sejam o mínimo que lhe garanta o direito a viver como membro vivo, actuante, desperto, da sociedade que o forma e que ele enforma. E todos os que acreditam que também se tem o direito à felicidade, à cultura e aos meios de a tal aceder. Que é como quem diz, todos os seres humanos que, acreditam e afirmam que, inalienavelmente, todos, cidadãos deste mundo, que não há outro,  têm o direito à dignidade, e a reclamar esse direito. 
E estamos todos os que se orgulham da língua portuguesa, e do quanto a dignificaste, renovaste, inventaste e expandiste por este mundo. Estão João Soares de Paiva, Paulo Soares de Taveirós, João Roiz de Castelo Branco, Bernardim Ribeiro, Luís de Camões, Sá de Miranda, Gil Vicente, Padre António Vieira, Bocage, Almeida Garrett, Herculano, Eça de Queirós, Camilo, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, José Cardoso Pires, Fernando Namora, Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira, Sophia de Mello Breyner, Luis Pacheco, Lobo Antunes, Luís Peixoto, Pepetela, Mia Couto, Craveirinha, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, José de Alencar, Machado de Assis, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Jorge Amado, e tantos outros.
Todos presentes, contigo José.
Levantados do chão!      



NOTA: As obras citadas, de José Saramago, são todas edições da Editorial Caminho, com a excepção, citada, de “Viagem a Portugal”. Além disso consultaram-se as obras “Dicionário Ilustrado da História de Portugal”, Publicações Alfa, 1985, e “A aventura das Línguas do Ocidente”, de Walter, Henriette, edição Terramar, de 1996.


Luís Diogo – 30/06/2012
 


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