domingo, 2 de novembro de 2014

POESIA EM PORTUGUÊS - JORGE DE SENA

 

"QUEM A TEM...."

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade."

Quem escreveu este arrebatador poema foi um dos vultos mais egrégios da cultura portuguesa de sempre, nascido a 2 de Novembro de 1919.
Aluno de Rómulo de Carvalho (António Gedeão) no Lyceu Camões, licenciado em engenharia civil, técnico da ex-Junta Autónoma das Estradas e tradutor, crítico, ensaísta, ficcionista, dramaturgo, poeta e, acima de tudo, professor, perdão, Professor de Literatura Portuguesa, tendo sido catedrático de Literatura Comparada na Universidade de Santa Bárbara (Estados Unidos), onde viria a falecer aos 58 anos, vítima de cancro.
Dava pelo nome de Jorge de Sena.
Feroz opositor do regime salazarista, de que detestava, principalmente, a mediocridade, a tacanhez, o provincianismo, a pequenez intelectual, exilou-se no Brasil e, após o golpe militar neste país, em 1964, nos Estados Unidos.  


"É TARDE, MUITO TARDE DA NOITE...
É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço musica, estou terrivelmente cansado.
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De Ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.

É tarde, devia Ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço
e a ouvir música. Desfeito de cansaço
incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar á força de
cansaço. Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano
de César Franck, e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isolda
no que não aceitarei nunca
l amor che muove il sole e l altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa , e de cuja
dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.
Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu ai-je á faire de l eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que
morrerei danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado."

Após o 25 de Abril, que acolheu entusiasticamente, regressou a Portugal, para colaborar na implantação e consolidação da democracia, na esperança, legítima que a Universidade o reconhecesse, como sucedeu com outros, e lhe confiasse a cátedra a que tinha direito.
Tal não sucedeu, o seu espírito era demasiado livre, detestava capelinhas e clientelas.
E com essa desilusão e amargura voltou aos Estados Unidos, onde já deixara a sua vida organizada.
Postumamente, a Universidade Santa Bárbara, em 1980, inauguraria o "Jorge de Sena Center for Portuguese Studies".  
Por cá, deixou-nos 20 livros de poesia, 6 de ficção, 4 dramas, 9 ensaios e imensa correspondência catalogada.
E, também por cá, uns roubaram-lhe Deus, outros o Diabo, todos a Pátria e a Humanidade, como magistralmente escreve no poema "Epígrafe para a Arte de Furtar", também magistralmente musicado por Zeca Afonso.
Dois gigantes da nossa cultura, dois vultos desalinhados dos vários rebanhos que, forçosamente, teriam de se encontrar...

 

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