* - últimos dois versos da canção "Cantar Alentejano", de José Afonso, dedicada a Catarina Eufémia
("Ao Romper Da Bela Aurora" - Grupo Amigos do Cante, Cuba)
"Põe João Mau-Tempo o seu braço de invisível fumo por
cima do ombro de Faustina, que não ouve nada nem sente, mas começa a cantar,
hesitante, uma moda de baile antigo, é a sua parte no coro, lembra-se do tempo
em que dançava com seu marido João, falecido há três anos, em descanso esteja,
é este o errado voto de Faustina, como há-de ela saber. E olhando nós de mais
longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver Augusto Pintéu, o que
morreu com as mulas na noite do
temporal, e atrás dele, quase a agarrá-lo, sua mulher Cipriana, e também o
guarda José Calmedo, vindo doutras terras e vestido à paisana, e outros de quem
não sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas. Vão todos, os vivos e os mortos.
E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante,
podia lá faltar, neste dia levantado e principal." (parágrafo final de "Levantado do Chão", livro de José Saramago vivido no Alentejo)
E ontem, 27 de Novembro, foi um desses dias "levantado e principal", em que o Cante Alentejano foi consagrado como Património Cultural Imaterial da Humanidade.
E, agora, talvez não interesse muito saber se as origens desta expressão cultural tem raízes gregas pré-cristãs, ou árabes, sequer do canto gregoriano. Pode ser uma só ou podem ser todas. Ou outras.
Mas o que temos como certo é que este canto nasceu da natureza, da terra, cheira a poejo, a trigo, a pão, do rancho, do queijo, do enchido, da vasta planície alentejana e das suas riquezas, muitas vezes, demasiadas até, esquecidas como nos canta o Zeca Afonso.
E está cimentado pelo suor e sacrifício, pelo desemprego, pela fome, pelo amor à terra, pela sede de justiça, pela luta das alentejanas e alentejanos contra a opressão, a ignorância, a violência.
E, no fundo, também é um desabafo, um alívio das agruras diárias, que amanhã continuam.
A vitória do Cante Alentejano, para além da justiça que se faz a toda uma comunidade que o entoa, é o reconhecimento da sua dignidade.
E que nos torna a todos dignos de a festejar.
E consagrar.
E permita-se que, num pequeno aparte, se estenda esta distinção a uma das pessoas, infelizmente já desaparecida, que muito fez pela divulgação não só do Cante, mas de todas as diversas expressões musicais do povo português: Michel Giacometti
E sigam as modas que, do solo alentejano, imparáveis, se levantam do chão.
("Hino dos Mineiros", Grupo Coral dos Mineiros de Aljustrel, fundado em Janeiro de 1926)
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