Quase todos os dias viamo-lo sentado à mesa do café "Cosco", ali na esquina da Barbosa du Bocage com a Rua do Arco do Cego, frente à Culturgest e à CGD, pequeno, olhos sorridentes e vivos atrás dos óculos, farta cabeleira e barba brancas, dedos finos, amarelecidos pela nicotina, cigarro poético entre eles.
A bica, o copo de água, uma conversa aqui, uma entrevista acolá. Talvez muitos não o reconhecessem.
Deixou-nos ontem e chamava-se António Ramos Rosa, um dos maiores poetas deste país.
Nascido em Faro em 17/10/1924, começou a ganhar a vida como explicador, tendo publicado em 1958 o seu primeiro livro, "O Grito Claro". Nesse ano, ainda em Faro, foi fundador da revista "Cadernos do Meio Dia", que a zelosa censura viria a proibir em 1960. Refira-se, porque o poeta também é cidadão que, após a II Guerra Mundial, colaborou activamente no MUD Juvenil, movimento de oposição à ditadura salazarista
Aportou a Lisboa em 1962, enfronhando-se nas lides de tradutor, ao mesmo tempo que colaborava em revistas como "O Tempo e o Modo", "Seara Nova", "Vértice" e "Colóquio/Letras", enchendo também as páginas dos suplementos literários do "Diário de Notícias", "A Capital", "Jornal de Letras", entre outros.
Entre outras obras, publicou dois ensaios que influenciaram gerações de leitores, como "Poesia, Liberdade Livre" (1962) e "A Poesia Moderna e a Interrogação do Real" (1979).
Poeta, ensaísta, crítico, publicou dezenas de livros entre 1958 (" O Grito Claro") e 2012 ("Em Torno do Imponderável").
Também lhe coube a tarefa de organizar uma importante antologia de poetas portugueses (a última série de "Líricas Portuguesas".
A sua qualidade poética valeu-lhe, entre outros, o Prémio Pessoa em 1988, para além de galardões nacionais e internacionais pela sua obra, incluindo a tradução.
Todo o seu espólio literário tinha, entretanto, sido doado à Biblioteca Municipal de Faro, que tomou o seu nome.
Recomenda-se a leitura da poesia deste grande autor, deixando-se aqui um pequeno aperitivo.
- Poema dum funcionário cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só
- ou, então,
Estou vivo e escrevo sol
Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de
vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram as suas faces
e na minha língua o sol trepida
melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
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