José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, se estivesse vivo, completaria hoje 84 anos.
Faleceu a 23/02/1987.
O Zeca Afonso continua, e continuará, a fazer parte integrante do nosso património.
Do património cultural, pela sua extensa e genial obra, tanto do ponto de vista da composição como da poesia.
E do património humano, pela constante coerência e verticalidade de carácter.
Já muito se disse e escreveu sobre o Zeca. Em anexo a este post, junta-se mais um trabalho sobre este nosso grande contemporâneo. E podemos recordá-lo, como se tem feito por várias vezes ao longo deste blog:
UTOPIA
*
Era
uma vez um trovador…
Uma
camisa, uma simples camisola, umas calças jeans, sapatos gastos, óculos quase
na ponta do nariz, viola a tiracolo, esta era a figura do trovador que
calcorreava os caminhos da sua terra e outras, sempre pronto a cantar as suas
baladas e a abraçar as gentes por quem ia passando e que também transportava
para as canções.
Nasceu numa terra ao pé do mar,
respirando o ar da maresia, na cidade conhecida como a Veneza do Norte, num mês
de Verão, desde logo conjugando os sons, os perfumes, da brisa marítima e dos
jardins floridos da cidade. Nessa altura, mandava no país um senhor de botas,
perfil de avarento, que grasnava que era nada contra a nação, e tudo pela
nação, e que, para sossego das gentes pobres mas honestas, como ele gostava,
amordaçou qualquer oposição e mandou o país ser cercado por uma atenta e
veneranda polícia política.
Nesses primeiros tempos, viu os
pais abalarem para África e ficar-se aos cuidados de uma titis lá da cidade.
Ainda era um puto, a saúde um pouco débil, nada de áfricas, mares e viagens.
Só
anos depois ruma ao continente dito negro, para reencontrar os progenitores, de
novo na companhia de outro tio, e durante um par de anos anda de cá para lá,
até se fixar, ainda e sempre com outro tio, este presidente de uma câmara
municipal do interior, para preparar a admissão aos estudos do ensino
secundário, o vulgar liceu, como então eram designados esses estabelecimentos
de ensino.
E
o liceu foi frequentá-lo, claro, na cidade dos doutores, derramada
languidamente sobre o Mondego, e do “Choupal até à Lapa, são Coimbra os meus
amores…”, lá reza a canção.
Os anos foram passando, o
nosso rapaz já era espigadote, já começava a ver o mundo e a sociedade com os
olhos mais abertos, já cantarolava umas modinhas e, nessa altura, nesses
tempos, de facto, que melhor cidade para estudar e cantar que a tal cidade dos doutores,
com a universidade e a sua “cabra” a vigiarem-na, os amores a passearem pelas
margens, pelas calçadas e choupais.
No liceu, para além das
disciplinas habituais, o importante, o fundamental era incutir nas mentes
jovens, nesse portugal dos pequeninos, o acrisolado “amor” à pátria, à
autoridade, ao deus, pátria e família, sem o que as jovens almas se poderiam
perder nas tentações do inferno, ou do espírito crítico.
A pátria não se discutia, lá
grasnava o velho das botas, que remédio, como é que se discutia entre bufos,
legionários, informadores, lá onde o medo se entranhava e deslizava como bolor
por debaixo da pele.
Foi nos últimos anos do
liceu que o jovem passou a acompanhar os grupos que, pela noite da cidade deambulavam pelas ruas e bairros, violas e
guitarras debaixo do braço, até uma ou mais tertúlias onde, invariavelmente, se
cantava a emblemática canção da cidade, o “fado de Coimbra”.
E o jovem trovador era dos
poucos e raros putos do liceu que tinham assento entre os mestres, o que o fez
escapar a umas tantas praxes em voga lá pela universidade. Por isso, e por já
jogar futebol nos juniores da Briosa.
-Então
trovador, conta lá como é que era, perguntou-se-lhe um dia.
-Era
porreiro, eu, enfim, vivia na casa de uma tia, mas ia muitas vezes ter com a
malta que vivia numas espécies de lares, que eram conhecidas por Repúblicas,
éramos todos solidários nas despesas, solidários na música, solidários no
espírito académico e no apoio aos mais fracos, e quanto às despesas encurtávamos
ao máximo, que o pilim era escasso, e arranjá-lo ainda mais difícil. E sempre
havia conversa, músicas, política, copos, talvez a mais, era uma estúrdia…O
pior era mesmo a massa…
-Valiam
os pais…?
-Sim,
os pais ajudaram-me muito, até numa fase posterior da minha vida, mais
difícil…mas, nos tempos do liceu e da faculdade, e como eu tinha um jeitinho
para cantar fados e outras coisas, a malta lá punha a capa e batina, pegávamos
nas guitarras e violas, e de vez em quando lá vinha uma tasca, uma associação
popular, um bairro, “Então sôtôres, vai uma modita?”, e nós lá cantávamos umas coisas, a troco de um
copo de três e um conduto, e mais uns tostões para a bucha do dia a dia.
-Também
tiveste paixão pelo futebol, não foi ?
-Pois
claro! Ali era obrigatório, a equipa da gente, a gloriosa Briosa estava na I
Divisão, repara tu, uma equipa de estudantes, toda amadora, até já tinha ganho
uma taça de Portugal, era a menina dos nossos olhos, para onde ela ia, ia um
bando de gajos atrás deles, na cidade, no país, não os largávamos, era à
boleia, de camioneta, se fosse preciso até arriávamos porrada só para defender
a honra da equipa.
-E
de amores ?
-Paixonetas
liceais por colegas de turma, percebes, aquilo tinha mais do Platão e menos da
paixão que ferve.
-Até
que um dia…
-É
verdade… É daquelas coisas, talvez demasiado jovens, estávamos pelo beicinho um
pelo outro, já no final do liceu, ela era costureira, foi tudo muito rápido, a
paixão foi tudo, a cabeça nem tanto. Atrevessámos muitas, muitas dificuldades… sem
dar por isso já tinhamos dois filhos, era muito!
-Aí
os teus pais outra vez…
-Foi
o que me valeu! Tanto do ponto de vista material como do apoio solidário.
-Mais
a tropa, o concluir do curso…
-Pois, tudo isso, e muito mais, estive
dois anos na tropa, a medrar, quase que ia para Macau, se não fossem problemas de saúde.
-E
entretanto…?
-Entretanto, tal como desde
os tempos do liceu, e da faculdade, nunca deixei as canções, e nunca deixei de
pensar e de reflectir sobre a cidade e o país, enfim, de ir fazendo a minha
aprendizagem cívica e política, incluindo nas músicas, embora quando fizesse as
primeiras, essa realidade estivesse, como direi?, camuflada. Mas, como sabes,
estamos sempre a aprender, todos os dias.
-Aprender, aprender sempre,
como dizia o outro.
-Com inteira razão.
Com as crescentes
dificuldades, o nosso amigo teve que interromper, quase no final, o curso de
letras que estava a concluir na Universidade, para ir ganhar a vida dando aulas
por diversos pontos do país, enquanto os filhos foram enviados ao cuidado dos
avós, lá para as longínquas áfricas.
Entretanto, e é isto que
mais nos interessa, aos 24 anos o trovador assumiu plenamente a sua condição, o
seu talento, a sua voz, e com outros companheiros de Coimbra gravou as suas primeiras canções, o que
repetiu três anos depois. Era algo que não se ouvia há quase 30 anos. Uma nova
e fresca brisa começava a soprar para os lados do Mondego.
No entretanto, e como já se
deixava adivinhar, o casamento foi por água abaixo, cada um para seu lado, as
tais paixões de juventude, não há poesia e música que as salve.
O trovador começou também a cantar
por estradas e caminhos, e gravar os discos de início de carreira, de começo
apenas baladas e canções com origem na cidade dos doutores, e outras baseadas
no cancioneiro popular do país, o tal país cada vez mais pequeno, cinzento e
vigiado, que ainda era governado pelo velho das botas.
Após a sua primeira
experiência como professor, e entretanto já tirado o curso, o trovador rumou
mais ao sul, para a terra de amendoeiras, figos e alfarrobas, banhada pelo sol
e pelo mar, e onde anos depois conhecerá o seu grande amor, a companheira do
resto da sua vida. O que é certo é que, embora vivendo no sul, ainda conseguiu
regressar, à sua cidade talismã, para gravar mais uns discos, mas já
prenunciando a ruptura com o fado citadino, e o balanceamento para voos muito
mais altos e mais ricos. Começavam os tempos dos meninos d’oiro e outras baladas,
onde já então a intervenção política era vincada e inequívoca, seja a denunciar
a miséria onde viviam os meninos do bairro negro, negro de miséria, fome e
exploração, e que existiam ( e não existem ainda ?), dura e realmente no país
também ele negro, escuro, seja a acusar os anafados e prepotentes vampiros que,
sem pedir licença a ninguém, e abençoados pelo poder, sugavam ( sugam ?) o país
e os seus cidadãos, até ficarem sem pinga de sangue e réstea de esperança.
-Não é assim, trovador?
-Foi assim mesmo. Começámos
pelo fado e por alguns temas do folclore nacional, ao mesmo tempo que
desenvolvia a minha própria criatividade a nível da música e da palavra. Para
desgosto, e até escândalo dos puristas esclerosados e, até, de alguns amigos,
que não me perdoaram ter trocado as tradicionais guitarras e violas do fado,
pela simples viola a acompanhar a voz. Assim nasceu o meu primeiro LP, com
baladas que já não tinham a ver com o fado.
-E quando falamos de
palavra, falamos de consciência.
-É lógico, quando referíamos
a aprendizagem, ela faz-se a todos os níveis, aprendemos com os nossos alunos,
os nossos colegas, os nossos amigos e familiares. Mas, e falo por mim, também
se aprende imenso, muito, com pessoas que, incrivelmente, alguns ainda teimam
em designar por analfabetos. Oh pá, calcorreia alguns bairros ditos da lata,
onde vive gente que só conhece a força do trabalho que vende, e a fome que
passa, que têm a consciência de quanto são explorados e humilhados. Aliás,
querem humilhá-los, mas a sua força e determinação são superiores a isso. Pois
é meu caro, com esses amigos aprende-se a vida, tão pobres e carentes, que até
são capazes de dividir contigo o nada que têm, por espírito solidário. E no
campo também existe essa comunhão de ideais, apesar da jorna de sol a sol, e de
os trabalhadores serem escolhidos como gado. E então nas colectividades
populares, o que ali vai de riqueza cultural, ele é músicos, ele é poetas, ele
é contadores de histórias. Juntas o ferro da cidade ao trigo do campo e
consegues ter uma riqueza que te fará a ti muito mais rico do ponto de vista
humano, e um manancial inspirador para músicas e textos.
-E foi numa dessas
colectividades que nasceu a canção…
-Foi na sociedade musical
fraternidade operária, numa vila da planície, que nasceu a canção que nos
acordou numa madrugada de um mês de
Abril. Lembras-te destes versos, de um poeta alegre e da sua praça da canção? :
“Que o poema seja microfone e fale/ Uma noite destas de repente às três e tal/
Para que a lua estoire e o sonho estale/ E a gente acorde finalmente em
Portugal.” Mal eu adivinhava…
-E mais o início da guerra e
as crises estudantis…
-Que ajudaram a desenvolver
outro tipo de análises e a tomada de posições e atitudes mais evoluídas, contra
a guerra e a ditadura, sempre dentro do tal espírito de aprendizagem
permanente, e que eu, e outros companheiros de jornada, tentámos transportar
para as nossas músicas, e denunciar. O grande momento da crise académica em
Lisboa, em 1962, talvez o primeiro grande abalo no seio do mundo estudantil, a
que se seguiu a greve e a crise coimbrã de 1969. E, antes, o susto que o
“botas” levou com a campanha eleitoral do Delgado, que foi um momento único de
unidade contra o regime e de catalisador de vontades e esperanças. Talvez nunca
tivesse havido a guerra…
Ao falar de guerra, falamos,
inevitavelmente, de África. Pois, na continuação desta história, o nosso
trovador, mais a sua companheira, a quem dedicou uma canção chamada apenas de
Maria, rumaram a África, ele já com saudades dos dois filhos e dos pais, que
trovador também tem família e também sente saudades.
Em África continuou a dar
aulas, e a fazer músicas, incluindo para peças de teatro, e não eram peças
quaisquer, uma até tinha como autor o consagrado Bertolt Brecht. Paralelamente,
ia contactando diversos elementos dos movimentos anti-coloniais, sempre
aprendendo a reflectir sobre a realidade e as diversas facetas que esta pode
assumir, no meio de afirmações, contradições, avanços e recuos, aprendendo
novas temáticas que cimentaram a consciencialização de que algo estava a mudar.
Enfim, farto de África, da
guerra, e com uma nova filha a enriquecer a família, regressa ao seu país, e
vai viver para a margem sul do grande rio, para uma cidade enriquecida por ter
sido o berço de um dos mais ilustres poetas nacionais, frequentador de um café
da capital chamado Nicola, figura ímpar do pré romantismo e que, para muita
gente, e infelizmente, só é conhecido por ser o suposto autor de anedotas
brejeiras, um tal de génio que dava pelo nome de Manuel Maria Barbosa du
Bocage, Elmano Sadino, arcádio e maçon.
Pobre do país que não sabe
cuidar dos seus artistas e da sua cultura, pobre do país que prefere cultivar
invejas baixas e mesquinhas de quem, como escreveu o vate Luís Vaz, “ se vão da
lei da morte libertando”. Como o próprio Camões, enxovalhado e maltratado por
quem, por receio ou ignorância, prefere bajular a mediocridade a premiar o
mérito, mesmo discordando das ideias do autor.
Que distância para com um
Voltaire que exclamava : “Senhor, não estou de acordo com as vossas ideias, mas
bater-me-ei até à morte para que as possais dizer”.
Voltando ao nosso trovador é
nessa cidade, que dá aulas no liceu local, até que uma grave doença o obriga a
ser internado. Quando sai do hospital vem a saber que a zelosa polícia política
o tinha expulso do ensino público, decerto por ser um perigoso inimigo do
regime. Que uma viola e uma voz podem fazer cair um império…
Quem caiu da cadeira, isto
é, quem virou os pés pela cabeça, deu-lhe o trangolomango, bateu com a testa no
chão, foi o que pensava ser o dono eterno do país, o tal velho das botas. Que,
a partir daí, ficou xoné de todo, não dizia coisa com coisa. Pelo sim pelo não,
os seus corajosos esbirros, não fosse outra vez dar-lhe a macacoa, fizeram de
conta que ele ainda mandava, até os ministros também faziam de conta que iam a
despacho, ao menos o velho estava entretido.
Para além de ser o portugal
dos pequeninos, continuava a ser o país do faz de conta. Até a nível
ministerial… Pobres patetas alegres. Beati paupere spiritu, como diriam os
nossos ancestrais latinos.
Para lugar do velhadas escolheram
mais do mesmo, outro velho, só um pouco menos velho, de óculos, que usava
sapatos e não botas, e que em vez da boca cortada à faca como o outro, sempre
esboçava um sorriso de vez em quando. Devia cheirar-lhe a primavera!, já que
durante uns meses houve quem se iludisse com a “primavera marcelista” e se
embalasse com as “conversas em família”, que mais pareciam conversas da treta,
sem minimamente atingir as qualidades destas.
-Despedido
do ensino oficial, como foi, trovador ?
-Olha,
dei explicações para sobreviver, e com o tempo a mais que forçosamente tinha,
frequentei com maior assiduidade as agremiações populares da minha zona, e
zonas próximas, sempre pronto para umas canções, para um dedo de conversa, uma
malga e um copo, se possível com um ou outro companheiro que também quisesse participar.
Como se diz, trazia outro amigo também. Aliás, aquela breve e hipócrita
primavera, se alguma virtude teve, e mal eles adivinhavam, permitiu a
organização e a consciencialização de sectores activos e produtivos da nossa
sociedade, sempre em crescendo, e que já era impossível deter.
-O
que nos leva, também, à evolução musical.
-Decerto.
Comecei a gravar uma série de LP’s, ligado a uma editora com a qual convivi largos
anos, que saíam quase sempre por alturas do Natal. Foram uma grande evolução estética,
a nível da música, dos textos, da orquestração, enfim, uma ruptura com que até
aí se fazia, tentando, sempre que a censura se distraía, passar a mensagem
política e social, sem descurar a faceta estética, que se pode sempre enviar
uma mensagem envolta em qualidade musical. Para além da viola, começou-se a
recorrer a outros instrumentos e, até, a gravar em estúdios ingleses e
franceses.
-E
até na televisão parecia mesmo primavera, com o Zip-Zip…
-Sem
dúvida. De repente entram-nos em casa o Almada Negreiros, o David Mourão
Ferreira, e os meus companheiros de jornada, o querido Adriano Correia de
Oliveira, o Zé Jorge Letria, o Xico Fanhais, o Manuel Freire e a sua “Pedra
Filosofal”. Uma pedrada no charco lamacento, uma nova forma de ver a cultura e popularizá-la.
-Só tu é que não foste lá.
-O
Carlos, o Zé Fialho e o Raul convidaram-me, mas a zelosa censura não deixou, o
que não impediu o Carlos do Carmo, quando lá foi, ter cantado o “Menino d’Oiro”
da autoria, disse-o ele, “…do Dr. José Afonso”. E isto escapou aos ditos
coronéis do lápis azul!
Ao
fim de 6 meses, o Zip-Zip zipou-se, a primavera decidiu que era tempo de tirar
a máscara e voltar ao cinzentismo medíocre e tacanho.
Mas
a semente tinha brotado, as flores começavam a desabrochar, e a música do país
começava a ter novos sons e novas cores. Cores fortes e garridas. A era da
balada esmorece e surgia o recurso a novos instrumentos, coros, efeitos
sonoros, orquestrações cuidadas, entrava-se na idade adulta.
E
explode 1971!
Em
Paris, Sérgio Godinho edira “Romance de um dia na estrada” e “Os
sobreviventes”, José Mário Branco lança “Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades”, em Lisboa, como nunca, Adriano Correia de Oliveira dá voz às músicas
de José Niza em “Gente daqui e d’agora”.
-E
surgem as “Cantigas do maio”
-Que por insistência do
orquestrador, e peça fundamental nesses anos de ouro da nossa música, o nosso
companheiro José Mário Branco, foram gravadas num castelo em Hérouville, ao pé
de Paris, onde estavam os estúdios Strawberry de Michel Magne, que o Zé bem
conhecia.
-E nesse disco lá está a
“Grândola…”
-E, facto curioso, aquele
barulho que parece de pés na areia, com que começa a música, foi, de facto,
gravado ao nascer do sol, no saibro do castelo de Hérouville. Eram os meus pés,
os do Fanhais e, se bem me lembro, do Zé Mário ou de outro amigo da orquestra.
-Um disco que foi mais uma
pedrada, esta até muito grande, no panorama da nossa música.
-Num ano em que, de facto, o
factor comum José Mário Branco une o meu trabalho, o dele e o do Sérgio. Mas, pá,
desse disco, nem vou falar muito, não gosto de me gabar, tantos têm sido os
elogios, até incomoda.
“Esse”
disco é, na modesta opinião do narrador, o mais intenso e belo repositório
musical cantado na língua nacional, nove temas arrebatadores, onde a poesia da
palavra se une à poesia musical, e à soberba orquestração, mais uma ruptura do
trovador para com os cânones musicais do costume. A par de um intenso lirismo,
que combina temas próprios com outros de raiz popular (como “Cantigas do Maio”,
“Milho Verde” e “Maio maduro Maio”), e com recurso a poemas do próprio e a um
outro do pintor António Quadros (“Ronda das Mafarricas” ), ainda podemos ouvir uma
canção de tema quase surrealista (“Senhor Arcanjo”) aliadas a outras de denúncia, de raiva, de
luta, e também de esperança e de amizade (por exemplo “Cantar Alentejano”,
“Mulher da Erva” ou o soberbo “Coro da Primavera”).
E
onde se destaca a tal canção que atravessou o país à meia noite e vinte e cinco
de uma madrugada de Abril, onde em cada esquina estava um amigo, e o povo é
quem mais ordena.
“Grândola,
vila morena”, composta em 1964, numa das deambulações do trovador, como antes o
próprio nos tinha relatado.
A
música do país nunca mais voltou a ser a mesma.
E
o trovador atravessou fronteiras, actuou em capitais estrangeiras, foi adoptado
como filho dilecto da nação galega, que, para vergonha nossa e gáudio dos
medíocres, o tratou e homenageou de forma superior, durante os anos de chumbo
em que se tentou (inutilmente) voltar a silenciar talentos.
Conviveu e cantou com
emigrantes, ouviu os seus problemas e anseios, andarilhou de novo por estradas
e caminhos, e tanto andou que, um belo dia, a tal polícia política não gostou
das brincadeiras, e trancafiou o trovador atrás das grades. De facto, o tal
inverno frio, agreste, escuro, travestido de primavera, continuava implacável,
embora trocando os nomes às mesmas coisas, como diz o outro, mudam as moscas…
O
trovador, saído do buraco policial, continuou a andar pelas gentes e colectividades,
e a editar os seus discos, sempre com alta qualidade, embora o fulgor do Maio
se mantivesse inultrapassável. E ao lado dos seus discos, iam aparecendo os dos
seus companheiros de aventura e talento, alguns deles, como o Zé Mário, o
Sérgio e o Luís Cílias, lá no exílio.
E
chegou o tal mês de Abril, ao som da música do trovador, e nos lábios o poema
da Sophia :
“Esta
é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da
noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo.”
Daí
para a frente, e mesmo continuando a editar discos, embora com menos
regularidade, o trovador empenhou-se com as pessoas, com os deserdados que
agora já tinham olhos para ver, bocas para exigir, braços para trabalhar e
construir para a comunidade.
Era
vê-lo de Norte a Sul, nas colectividades, nas comissões de trabalhadores, nas
associações de moradores, nos sindicatos, onde houvesse luta, anseios, fome e
sede de justiça e de sonhos para concretizar.
De
camisa aberta no verão, ou de samarra e boina no inverno, lá ia ele, caminhando
rumo ao que considerava ser o futuro ideal. E tanto idealismo ele jorrava por todos os poros,
cavalgando o sonho e voando nas asas da utopia, para que o mundo pule e avance,
como diria o poeta.
Se a acção desenvolvida foi
bem conduzida, se tinha bases firmes para andar, não nos cabe aqui discutir. O
que importa referir é que o trovador voltava a oferecer canções a troco do
conduto, a ajudar a amanhar uma terra ali, a construir uma escola acolá, a
erguer um bairro mais adiante, a fazer o saneamento básico na aldeia ali ao
fundo. Algo que o cinzentismo frio e hipócrita, de calculadora na mão e
politicamente correcto na cabeça, nunca perdoaria.
Deixá-los, coitados, que ao
pé das gentes o trovador buscava novas ideias, novos textos, novas melodias,
sempre com os olhos no futuro.
-Trovador,
se fosse hoje, com toda esta evolução musical, vibrante, expressiva, variada,
rica, que temos por todos os lados, onde é que te encaixavas ?
-Sabes,
todos evoluímos, e se o não o fazemos por nós, a sociedade, o meio onde andas,
estás a ver ?, a malta que convive contigo, também te ajudam, te empurram,
fazem-te evoluir…
-Saudades
do futuro, como dizia o Padre António Vieira ?
-Saudade
é de facto, muito nosso, muito da nossa cultura, da tua, da minha, mas não vou
por esses lados ou percorro esses atalhos. Sou um andarilho, para retomar o
título do meu primeiro LP, “Cantares do andarilho”. Até penso que me safaria
muito bem nestes dias que passam.
-Onde,
ou com quem ?
-Onde
houvesse um sítio onde coubessem uma voz e uma viola. E até podia ser na
companhia de quem talvez menos se contasse…
-Como
por exemplo…?
-Para
além dos meus eternos companheiros e amigos, como o Zé Mário, o Sérgio, o
Fausto, o Vitorino, o Júlio e o Fernando
Pereira, por que não experimentar outras sonoridades, outras expressões. Olha,
os Da Weasel, ou os Moonspell, se estes quisessem temas em português e, claro
os Deolinda.
-Os
de “Clandestino”…
-Pois,
Até parece que eu podia ter escrito essa, modéstia à parte.
Até que um dia sentiu os primeiros
sintomas da doença.
A
sua actividade diminuiu, as canções e as sessões de canto foram sendo cada vez
menos frequentes, a sua companheira de sempre amparava-o, até a grande Fundação
lhe arranjou, na margem sul, claro, um andar com elevador, para não ter de
fazer o esforço de subir e descer escadas.
Deixou-nos,
rodeado dos seus amores e dos seus amigos e companheiros de sempre, e de milhares
e milhares da imensa e anónima gente, que cantou durante anos, já que os novos
senhores, a quem incomodava a referência a um certo mês, o preferiram ignorar.
Uma viola e uma voz, para além de poderem ajudar a derrubar impérios, quando
são inteligentes e coerentes, incomodam os pequenos deuses caseiros de que
falava o Jorge de Sena.
Deixou-nos
o trovador, acima de tudo, o indeclinável direito à utopia, de sonharmos com a
cidade, e com a sociedade que julgamos serem as ideais:
“Cidade/Sem muros nem ameias/Gente
igual por dentro/Gente igual por fora/Onde a folha da palma/Afaga a
cantaria/Cidade do homem/Não do lobo, mas irmão/Capital da alegria.”
* Ao Zeca Afonso, com um infindável e eterno
abraço de ternura
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